O Império por Trás da Carne: A História da J&F, a Holding que Comanda Bilhões no Brasil

Como uma estrutura criada para organizar o patrimônio de uma família goiana virou uma das holdings mais relevantes — e controversas — do capitalismo brasileiro moderno.

SÃO PAULO — Uma gravação de áudio de 38 minutos, captada num porão do Palácio do Jaburu, custou à J&F mais caro que qualquer planta frigorífica, celeiro de gado ou refinaria de energia que os Batista compraram ao longo de seis décadas. Na madrugada de 18 de maio de 2017 — o “Joesley Day” — a revelação de que Joesley Batista gravara o então presidente Michel Temer fez a JBS perder R$ 33 bilhões em valor de mercado e ameaçou soterrar um conglomerado que, naquele momento, já faturava perto de R$200 bilhões de reais. 

O grupo não ruiu, passados oito anos, a holding que começou como açougue de beira‑de‑estrada em Anápolis opera em 22 países, fatura algo próximo de R$ 450 bilhões anuais e emprega 270 mil pessoas. O que mudou foi o mapa dos investimentos, a estrutura de poder e talvez, o mais difícil, o discurso público dos Batista.

Esta é a história de como a J&F conquistou escala global com carne subsidiada, quase foi à lona sob o peso de um grampo e agora tenta se reinventar como produtora de energia e banco digital.

O talho que aprendeu a falar dólar

A relação dos Batista com o gado começou décadas antes de qualquer negócio internacional. Criado numa fazenda em Carmo do Rio Claro (MG), José Batista Sobrinho, o “Zé Mineiro”, aprendeu cedo a avaliar o peso dos animais “no olho”. Em 1953, aos 20 anos, ele e o irmão Juvensor passaram a percorrer fazendas no interior de Goiás comprando e revendendo bois. A reputação de só negociar carne de primeira permitiu que, ainda naquele ano, abrissem a Casa de Carnes Mineira em Anápolis, ponto de partida da futura Friboi.

O passo seguinte aconteceu em 1957, quando a dupla levou o açougue para o Mercado Central da Cidade Livre, distrito que logo se transformaria em Brasília. Ao atender as obras da nova capital, os irmãos juntaram dinheiro suficiente para inovar, instalaram câmaras frigoríficas, permitindo padronizar cortes e aumentar o raio de distribuição. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970, essa estrutura deu origem ao frigorífico Friboi — nome que permaneceria na fachada até 2006, quando virou apenas marca de produto.

Nos anos 1980, já como maior distribuidora de carne do Distrito Federal, a empresa trocou de comando: José Batista Júnior, filho mais velho de Zé Mineiro, assumiu a presidência aos 20 anos. A cultura de pôr herdeiros no centro da operação continuou com os caçulas Wesley e Joesley, que, ainda adolescentes, cuidavam de compra de gado e logística. Em 1995, Juvensor deixou a sociedade para focar nas fazendas, enquanto Zé Mineiro manteve a trajetória de expansão.

A abertura comercial do Brasil nos 1990 deu a quem padronizasse carcaças, cumprisse requisitos sanitários e falasse câmbio um passaporte para o mundo. Wesley acelerou compras em vários estados, levou o abate para perto dos portos e, com linhas do FCO e incentivos de ICMS goiano, empurrou a capacidade de 400 para 5 000 cabeças diárias.

Foi exatamente nesse ponto que a Friboi cruzou com a política das “campeãs nacionais” — o programa informal pelo qual o BNDES turbinaría empresas brasileiras capazes de disputar mercado lá fora. Em 2005, o banco de fomento entrou com R$ 185 milhões por 17 % da companhia e abriu a torneira de crédito subsidiado.

Com capital barato em mãos, os Batista compraram a Swift Armour na Argentina ainda em 2005 e, dois anos depois, iniciaram a célebre ofensiva de aquisições nos Estados Unidos. O apoio estatal com juros de longo prazo bem abaixo do mercado reduziu o risco cambial e viabilizou a escalada que transformaria um açougue de beira de estrada na maior processadora de proteína animal do planeta.

A Maratona de Wall Street

Entre 2007 e 2011, já rebatizada JBS, a empresa protagonizou a temporada mais agressiva de M&A do agronegócio. A empresa que ainda era vista como um player emergente do Cerrado, se lançou numa cruzada bilionária para tomar o mercado americano.

O primeiro golpe veio em julho de 2007, quando a JBS desembolsou US$ 1,4 bilhão pela Swift & Company, até então a terceira maior processadora de carne bovina e suína dos EUA. A operação deu à JBS uma presença física imediata no mercado americano, com acesso a plantas industriais em sete estados e uma rede logística nacional pronta.

Com a operação americana estruturada, a JBS mirou nas maiores. Em 2008, tentou comprar a National Beef e a Smithfield Beef junto com a Five Rivers Ranch (maior confinamento bovino do país). A primeira acabou vetada por razões antitruste, mas a segunda foi concluída por US$565 milhões. A JBS ganhava mais plantas, verticalizava parte da operação e aumentava a capacidade de produção com sinergia real.

A cereja do bolo viria em 2009, quando a brasileira arrematou, em pleno Chapter 11, o controle da Pilgrim’s Pride, gigante da carne de frango americana, por US$ 2,8 bilhões. A operação foi estruturada como um DIP financing, com capital novo injetado na reestruturação judicial. A JBS assumia 64% da nova companhia, evitava passivos trabalhistas e criava uma holding com governança própria em Greeley, Colorado.

Em menos de uma década, a receita líquida da JBS saltou de US$ 1,8 bilhão (2005) para mais de US$ 45 bilhões (2012). A contrapartida foi a dívida, a alavancagem bruta chegou a cinco vezes o Ebitda, mas o custo efetivo era artificialmente baixo, amortecido por taxas subsidiadas do BNDES, que financiou cerca de R$ 7 bilhões para as aquisições. Com o câmbio valorizado e o hedge natural das receitas em dólar, o risco cambial foi administrado com folga.

Nos bastidores, Joesley controlava a expansão como chairman. Wesley, mais operacional, revezava-se entre as fábricas do interior e os escritórios de Nova York. A sede do grupo ainda era em São Paulo, mas a estrutura jurídica se espalhava por Delaware, Amsterdã, Buenos Aires e Greeley. Faltava apenas uma entidade que consolidasse tudo isso num centro de poder.

O Nascimento da J&F

Com tantas peças espalhadas, os Batista precisavam de uma capota societária. Em 2009, nasce a J&F Investimentos — uma holding fechada (com 60% das ações da JBS), criada para centralizar o caixa do grupo, blindar o controle familiar e permitir decisões longe dos holofotes da CVM.

Mais do que uma estrutura jurídica, a J&F foi desenhada como um veículo de perpetuação patrimonial com ambição de private equity. Uma empresa de investimentos com caixa próprio, gestão centralizada e liberdade para diversificar além da carne.

A holding não surgia do zero, mas a partir do fluxo perpétuo da JBS, que àquela altura já gerava bilhões de dólares em caixa livre. Com esse colchão, a J&F saiu às compras, construindo um portfólio que hoje inclui banco, energia, celulose, bens de consumo, tecnologia e mídia.

A Lógica da Diversificação

O primeiro uso foi financeiro, em 2011, a família comprou o banco gaúcho Matone, que enfrentava dificuldades financeiras. A operação envolveu um aporte total de R$1,85 bilhão, com apoio do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), para assumir 100% do banco, ele se fundiu com o Banco JBS e foram rebatizados como Banco Original. Um anos depois, o ex-presidente do Banco Central do Brasil Henrique Meirelles assumiu da presidência da empresa. Em 2016, aportou mais R$ 1 bilhão para migrar tudo ao modelo 100 % digital. Hoje, o Original financia pecuaristas clientes da JBS, desconta duplicatas de fornecedores e serve de motor de crédito para o PicPay; a inadimplência, que chegou a 8 %, caiu para 2,9 % em 2024, quando o banco entregou Ebitda de pouco mais de R$ 600 milhões.

O segundo movimento foi Eldorado Celulose. Em 2012, os Batista cravaram R$ 6,2 bilhões num greenfield em Três Lagoas, apostando que a celulose, também cotada em dólar, equilibraria o ciclo do boi. A planta de 1,8 milhão de toneladas/ano virou hedge natural e hoje gera algo próximo de R$ 3,2 bilhões de Ebitda, dinheiro que paga dividendos a holding enquanto a disputa arbitral com a Paper Excellence se arrasta em Estocolmo. Se vencer e destravar a segunda linha, a Eldorado dobrará de tamanho sem que a J&F precise pôr mais capital.

O terceiro pilar foi bens de consumo. Entre 2012 e 2013, a holding comprou as marcas Minuano, Assim, Francis e Neutrox da Hypermarcas por aproximadamente R$ 350 milhões. Batizada Flora, a operação usa subprodutos da cadeia bovina em sabonetes e limpadores e hoje fatura R$ 2,9 bilhões com margem EBITDA de 10 %. Há conversas para vender o ativo por algo em torno de dez vezes o Ebitda; caso o cheque venha, o dinheiro irá direto para acelerar projetos de energia na Âmbar.

Para controlar a narrativa do agro, os Batista ainda compraram o Canal Rural em 2013 por pouco mais de R$ 40 milhões. Por fim, a forquilha digital: em 2015, a J&F pagou cerca de R$ 800 milhões por 51 % do PicPay, uma carteira capixaba com pretensão de virar superapp. A farra do cashback em 2020 sangrou R$ 1,3 bilhão em caixa, mas cortes de custo e foco em crédito consignado fizeram a fintech virar o jogo: o balanço de 2024 exibiu lucro de R$ 252 milhões e planos de IPO na Nasdaq em 2026.

No fundo, a lógica permanece a mesma desde o açougue de Anápolis: usar o fluxo perpétuo da carne — hoje mais de US$ 3 bilhões livres por ano — para pagar multas, rolar dívidas e comprar ativos que tenham barreira de entrada alta, preferencialmente cotados em dólar ou regulados, onde concorrentes não chegam com facilidade. Quando um negócio emperra, a família troca gestão e segura até voltar ao azul; quando amadurece, vende com múltiplo gordo e recicla o capital. É um private‑equity de capital próprio, rodando em ciclo contínuo, cujo combustível ainda vem do mesmo lugar: o boi abatido a cada segundo nas plantas da JBS.

O gravador, o escândalo e a multa recorde

No começo de 2017, Joesley já se sentia pressionado pela Lava Jato. O gravador entregue à Procuradoria‑Geral da República — onde Temer falava em “manter isso” com Eduardo Cunha — tornou‑se a arma para negociar imunidade penal. O efeito de curto prazo foi devastador: ações da JBS despencaram, credores exigiram covenants adicionais e linhas de capital de giro secaram. Para segurar o grupo, os Batista assinaram o maior acordo de leniência do Hemisfério Sul: R$ 10,3 bilhões a serem pagos até 2030, metade à União, metade a estados e fundos de pensão. 

O compliance imposto pelo acordo fatiou a velha cultura caseira. Ex‑executivos de Ambev e Siemens passaram a checar contratos, e um monitor externo da SEC recebeu acesso direto aos servidores do grupo por cinco anos.

Vender para continuar vivo

Para pagar a conta, a J&F vendeu joias de família. Em agosto de 2017, a Vigor virou mexicana: a Lala pagou R$ 5 bilhões por 99 % da marca. Na sequência vieram Alpargatas (Havaianas) por R$3,5 bilhões para Itaúsa e Cambuhy; a operadora argentina de proteína Moy Park foi repassada à própria JBS por US$ 1,3 bilhão. Em dois anos, o grupo levantou US$ 8,4 bilhões em desinvestimentos, limpando parte da dívida e honrando parcelas da leniência.

Os Batista juraram à imprensa que jamais venderiam a JBS — “a vaca leiteira do grupo” — e cumpriram. Em 2024, a maior processadora de proteína animal do planeta reportou receita líquida de R$ 417 bilhões, 14,6 % acima do ano anterior, e recuperou margens depois de um ciclo de boi gordo caro nos EUA. 

A curva para energia

Com menos ativos de consumo no portfólio, a família mirou um negócio que sempre flertou com a carne: geração de energia. Frigoríficos demandam eletricidade estável; construir uma geradora interna parecia óbvio. Assim surgiu a Âmbar, que começou despachando excedente de termelétrica para o mercado livre e acabou virando plataforma de M&A. Em junho de 2024, a Âmbar arrematou 12 usinas termelétricas da Eletrobras por R$ 4,7 bilhões, ampliando sua capacidade instalada para 2,1 GW — potência suficiente para abastecer uma cidade do tamanho de Belo Horizonte. 

O negócio fecha um ciclo: a JBS vira cliente cativo da Âmbar; a Âmbar cobre parte da volatilidade de preço de energia; e o caixa da carne financia expansão de geração, numa simbiose difícil de replicar por players sem fluxo dolarizado.

Caixa

O acordo de leniência drena R$ 1,4 bilhão por ano. Mesmo assim, a holding fechou 2024 com R$ 32 bilhões em caixa consolidado — alta gerada pelo dólar forte e pelo ganho de margem no ciclo de frango nos EUA. A relação dívida líquida/Ebitda caiu para 1,9×, a melhor da década. Sessenta por cento do fluxo livre cobre as parcelas da multa; o restante banca energia, fintech e, mais novo, fertilizantes: os Batista analisam oligar para comprar uma mina de potássio na Amazônia.

Entre o fluxo da carne e o fantasma do headline

O mercado ainda divide o conglomerado em dois: uma máquina de geração de caixa e um risco permanente de notícia negativa. Quem comprou ações da JBS no dia seguinte ao Joesley Day multiplicou o capital por três; quem teme nova delação mantém distância. A dúvida é se energia e fintech — negócios regulados, sensíveis a imagem — aceitarão um controlador que carrega processos nos EUA e no CADE.


Os Batistas sempre jogaram contra o relógio: abatem 52 bois por minuto, plantam eucalipto em ciclos de oito anos, despacham megawatts na ponta do sistema. No mundo dos escândalos, porém, o tempo corre ao contrário: cada manchete revive antigos pecados. Se o fluxo da carne seguirá comprando o silêncio dos riscos ou se a holding logrará, enfim, virar a página, o mercado vai saber quando PicPay testar a Nasdaq e a Âmbar religar o primeiro gigawatt herdado da Eletrobras. Até lá, o império goiano segue seu ritual diário — cortar, embalar, exportar — enquanto aprende que, na era do compliance, a faca afiada precisa vir acompanhada de um gravador desligado.