Com 67 mil processos nos EUA, mais de US$16 bilhões em indenizações e a ameaça de recuperação judicial, a compra da Monsanto se tornou um dos maiores erros de alocação de capital da história corporativa recente.

Em junho de 2018, a Bayer concluiu a maior aquisição de sua história. Com um cheque de US$63 bilhões, a farmacêutica e química alemã assumiu o controle da Monsanto, então líder global em sementes transgênicas e agroquímicos. A expectativa era ambiciosa: criar uma gigante do agronegócio com musculatura para ditar o ritmo da agricultura mundial.
Na teoria, a tese parecia imbatível, a Monsanto traria um pipeline de inovação genética e acesso privilegiado ao mercado americano. A Bayer entregaria escala global, distribuição e capital para expansão. O plano previa sinergias operacionais superiores a US$2 bilhões por ano, mas o que o mercado não calculou, ou preferiu ignorar, era o passivo oculto que vinha no pacote.
Seis anos depois, a promessa virou pesadelo e a Bayer já desembolsou mais de US$16 bilhões em processos judiciais ligados ao Roundup, o herbicida mais famoso da Monsanto. O produto, que somou, em 2024, US$2,8 bilhões em faturamento, representa 5,5% das receitas totais da farmacêutica alemã, passou a ser associado a casos de câncer nos Estados Unidos.
Hoje, mais de 67 mil ações correm na Justiça americana e o Roundup, que por décadas simbolizou a eficácia da agricultura moderna, ameaça corroer não apenas o caixa da Bayer, mas também sua reputação, seu valor de mercado e sua capacidade de operação. Desde a aquisição, a empresa já perdeu mais de 70% de seu valor na bolsa, enfrenta pressão crescente de acionistas institucionais e considera vender divisões para conter o endividamento.
A origem do problema

A operação parecia promissora, ao incorporar a Monsanto, a Bayer dobrava de tamanho no agronegócio global, assumia a liderança no mercado de sementes geneticamente modificadas e crescia sua presença nos Estados Unidos, território importante para qualquer multinacional do setor. Porém, junto dos ativos, a companhia herdou o passivo mais tóxico da história recente da indústria química: o Roundup.
Formulado à base de glifosato, o herbicida era comercializado desde os anos 1970 como uma solução eficaz e segura para o controle de plantas daninhas. Durante décadas, a Monsanto defendeu a substância com firmeza, sustentando que o produto era inofensivo para a saúde humana. Essa narrativa começou a ruir em 2015, quando a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), órgão vinculado à Organização Mundial da Saúde, classificou o glifosato como “provavelmente cancerígeno para humanos”.
A partir daí, começaram a surgir ações de ex-usuários do produto alegando desenvolvimento de câncer, principalmente linfoma não-Hodgkin, após exposição prolongada. O caso que inaugurou a crise jurídica da Monsanto foi o de Dewayne Johnson, jardineiro escolar na Califórnia diagnosticado com câncer terminal. Em 2018, apenas três meses após a conclusão da compra, um júri de San Francisco condenou a Monsanto a pagar US$ 289 milhões em indenização (valor posteriormente reduzido para cerca de US$ 78 milhões).
Desde então, a Bayer tem sido alvo de uma avalanche de processos nos Estados Unidos. Já foram desembolsados mais de US$10 bilhões em acordos e provisões adicionais de US$6,2 bilhões seguem registradas no balanço de 2025. Em janeiro deste ano, outro júri, dessa vez na Geórgia, condenou a companhia a pagar US$2,1 bilhões, incluindo US$ 2 bilhões apenas em danos punitivos.
A estratégia de separar para sobreviver
Nos bastidores, a Bayer já trabalha com alternativas mais agressivas, segundo o Wall Street Journal, a companhia contratou os escritórios Latham & Watkins e AlixPartners para estudar uma eventual entrada em Chapter 11, o mecanismo de recuperação judicial dos EUA. A proposta envolveria subsidiárias da Monsanto, permitindo suspender as ações em curso e negociar um plano coletivo de pagamento sob tutela da corte de falências.
O movimento não seria inédito, mas é arriscado. Casos semelhantes, como o da Johnson & Johnson com os processos de talco contaminado por amianto, foram barrados na Justiça americana. A 3M também tentou proteger sua subsidiária de protetores auriculares por meio do Chapter 11 e fracassou. No fim, precisou firmar um acordo de US$6 bilhões.
Mesmo com o risco de derrota, a opção está na mesa. Em paralelo, a Bayer tem intensificado a atuação política nos EUA, buscando apoio de congressistas para aprovar legislações que limitem a responsabilização retroativa da empresa. A leitura interna é que parte dos litígios está baseada em uma jurisprudência instável, que poderia ser revertida com mudanças normativas.
Reação do mercado e separação do glifosato
Enquanto o embate jurídico avança, a Bayer tenta blindar suas demais operações. Em abril, aprovou uma emissão de ações equivalente a 35% de seu capital, com o objetivo de levantar US$9 bilhões. Os recursos devem reforçar o caixa e financiar eventuais acordos.
No mesmo período, a empresa também anunciou a segregação da unidade de glifosato dentro da divisão agrícola. A medida, segundo fontes próximas ao conselho, visa preparar o terreno para uma possível cisão ou venda parcial do negócio no futuro. Com isso, a companhia ganharia mais agilidade para negociar com credores e proteger ativos em uma possível reestruturação judicial.
Apesar dos esforços, o clima ainda é de incerteza, a Bayer não descarta entrar com o pedido de Chapter 11 nos próximos 12 a 18 meses, caso a Suprema Corte americana não acolha os recursos pendentes ou se os processos de primeira instância mantiverem a escalada das indenizações.
A Bayer perdeu o controle da narrativa
Além da dimensão financeira, a Bayer perdeu o controle da narrativa pública. A imagem da empresa, antes associada a medicamentos de referência como Aspirina e Xarelto, passou a ser atrelada a um produto cancerígeno, a julgamentos multimilionários e à ideia de impunidade corporativa.
Nos Estados Unidos, advogados especializados em ações coletivas transformaram os casos contra o Roundup em um modelo de negócio. Publicidade em massa, sites de denúncia, campanhas com vídeos dramáticos e parcerias com escritórios locais criaram um ecossistema de litigância que cresce de forma autônoma.
Na Europa, a empresa sofre pressão ambiental e o uso de glifosato está sendo revisto por reguladores da União Europeia, e países como Áustria, Alemanha e França discutem restrições severas ou substituições gradativas do produto.
O CEO Bill Anderson, no cargo desde 2023, tem dito que sua prioridade é “encerrar o ciclo jurídico do glifosato” até 2026. Mas investidores cobram mais do que retórica. A empresa ainda sofre com desconfiança dos mercados e questionamentos sobre sua capacidade de gerar valor em meio a tantos passivos ocultos.
A maior crítica, no entanto, recai sobre o processo de diligência feito à época da compra. Relatórios internos indicavam que a Monsanto já enfrentava dezenas de processos ligados ao Roundup, mas a Bayer teria confiado que conseguiria reverter ou mitigar os riscos em cortes superiores. A aposta, como ficou claro, não se confirmou.
O que vem agora
Nos próximos meses, a Bayer terá de decidir entre duas rotas: tentar avançar em acordos bilionários, como fez com Johnson, ou levar adiante o plano de recuperação judicial parcial, arcando com os custos reputacionais que esse tipo de reestruturação impõe. Nenhum dos caminhos é simples — e ambos têm impacto direto na governança e nas ações da empresa.
Mais do que o custo jurídico, a Bayer luta agora para preservar sua imagem institucional. O que era para ser o passo definitivo rumo à liderança global no agronegócio virou um símbolo de como a busca por escala, sem a devida cautela, pode comprometer décadas de reputação — e de valor de mercado.
A lição ainda está em andamento. Mas, para analistas e investidores, a história da Bayer com a Monsanto já é, sem dúvida, uma das aquisições mais caras da história moderna. E talvez a mais difícil de justificar.