A Guerra do Varejo: O Confronto Épico entre Abilio Diniz e Jean-Charles Naouri

O mundo empresarial brasileiro já foi palco de muitas disputas corporativas intensas, mas poucas se comparam à batalha pelo controle do Grupo Pão de Açúcar, protagonizada por Abilio Diniz e o grupo francês Casino. Essa história emblemática do varejo brasileiro foi marcada por estratégias ousadas, acordos inusitados e um confronto que ultrapassou as fronteiras empresariais, chegando até às esferas políticas de Brasil e França.

O Início da Parceria: De Rivais a Sócios

No final dos anos 1990, o Pão de Açúcar, a maior rede de supermercados do Brasil, enfrentava uma situação financeira complicada. O cenário pós-abertura econômica, iniciado no governo Collor, trouxe concorrência internacional e remodelou o mercado varejista, gigantes como o Carrefour e o Walmart vieram para o Brasil. Isso pressionou as margens de lucro e limitou a capacidade de expansão do Pão de Açúcar, tornando urgente a necessidade de capital.

Abilio Diniz, então presidente do grupo fundado por seu pai, viu-se obrigado a buscar um parceiro internacional. As negociações envolveram diversos investidores estrangeiros, incluindo o próprio Carrefour, o maior rival do Casino. No entanto, a proposta mais atrativa veio de Jean-Charles Naouri, presidente do Casino, que tinha planos de expansão global e enxergou no Brasil um mercado promissor.

Em 1999, o Casino comprou 24% do capital do Pão de Açúcar por cerca de R$854 milhões. Naquele momento, o Pão de Açúcar era considerado um “negócio medíocre”, segundo o próprio Naouri em entrevista anos depois, com problemas de liquidez e dificuldades para competir com os estrangeiros. O contrato firmado entre o Casino e o Pão de Açúcar continha uma série de cláusulas estratégicas, sendo a mais importante a que dava ao Casino o direito de assumir o controle total em 2012.

Repercussão do Acordo

Além dos R$854 milhões para comprar uma participação de Abílio Diniz, o grupo injetou mais R$1,5 bi na empresa

A entrada do Casino no Pão de Açúcar foi inicialmente bem recebida pelo mercado financeiro. Analistas viam o acordo como uma resposta necessária à ascensão do Carrefour no Brasil, que desde 1991 havia superado o Pão de Açúcar em vendas. Com a injeção de capital do Casino, a empresa brasileira conseguiu realizar novas aquisições e expandir sua rede, especialmente no setor de supermercados de bairro.

Entre 1999 e 2005, o Casino aumentou sua participação no Pão de Açúcar, investindo mais R$1,5 bilhão. Com esses novos recursos, o grupo conseguiu comprar concorrentes menores e consolidar sua liderança em várias regiões do Brasil, enquanto também modernizava sua infraestrutura.

Aquisições

  • 1999: Aquisição da rede Peralta Supermercados, composta por 37 supermercados e 1 hipermercado, por R$200 milhões.
  • 2000: Aquisição dos supermercados Reimberg, Nagumo e Rosado, para ampliar a atuação no estado de São Paulo, por cerca de R$ 300 milhões.
  • 2001: Aquisição de 26 lojas da rede Supermercados ABC, no Rio de Janeiro.
  • 2002: Compra da rede Sé Supermercados, a segunda maior de São Paulo, por R$250 milhões.
  • 2003: Aquisição de 50% da rede Sendas, a quinta maior do país na época.

O Contrato de Controle Diferido: Uma Salvaguarda Estratégica

O contrato firmado entre Abilio Diniz e o Casino em 1999 era mais do que uma simples parceria financeira. As negociações entre as partes foram complexas e cuidadosamente estruturadas para proteger os interesses de ambos os lados ao longo do tempo. Em particular, o contrato continha uma cláusula fundamental que moldaria o destino do grupo: o controle diferido.

A cláusula de controle diferido foi uma criação que refletia o equilíbrio de forças entre Abilio e Jean-Charles Naouri, o presidente do Casino. Para o Casino, assumir o controle de imediato seria arriscado, já que o Pão de Açúcar precisava de uma reestruturação antes de alcançar a estabilidade necessária. Já para Abilio, manter o controle por mais tempo era uma questão de honra e de tempo para concluir seu plano de recuperação e expansão da empresa.

O Mecanismo do Controle Diferido

Pelo contrato, o Casino não teria controle imediato sobre a gestão do Pão de Açúcar. Em vez disso, a cláusula permitia que Abilio mantivesse o comando operacional e estratégico até 2012, quando o Casino poderia exercer o direito de adquirir uma única ação na Wilkes Participações, a holding controladora da rede, por apenas 1 dólar. Essa ação, porém, seria suficiente para garantir a maioria acionária e o controle total do Pão de Açúcar.

A inclusão dessa cláusula foi uma solução de compromisso. Naouri queria proteger o investimento de longo prazo do Casino e garantir que, em algum momento, o grupo francês pudesse liderar a operação. Abilio, por outro lado, buscava tempo para expandir a rede e reforçar seu legado antes de perder o controle da empresa fundada por seu pai.

A Cláusula de Não Concorrência

O contrato também incluía uma cláusula de não concorrência, que impedia Abilio de negociar com concorrentes diretos do Casino durante o período de controle diferido, a menos que tivesse o consentimento explícito do parceiro francês. Essa medida visava evitar que Abilio, conhecido por suas jogadas audaciosas, tentasse alianças inesperadas que pudessem comprometer a posição do Casino no Brasil.

A Natureza Complexa do Acordo

Para entender a importância dessas cláusulas, é essencial considerar o cenário competitivo da época. O mercado brasileiro de varejo estava em expansão, e grandes players internacionais como Carrefour e Walmart estavam ampliando sua presença agressivamente. O Casino precisava de garantias de que seu investimento não seria diluído por manobras de Abilio ou por mudanças repentinas no mercado. Por isso, a cláusula de controle diferido não era apenas uma salvaguarda, mas uma estratégia para permitir que o Casino, ao longo do tempo, se fortalecesse no mercado brasileiro sem pressões imediatas.

A Jogada de 2011: Tentativa de Fusão com o Carrefour

Proposta de Fusão

O ano de 2011 foi o início de um confronto inevitável. Com a proximidade da data para exercer o controle total, Abilio tentava renegociar os termos do contrato. Ele enxergava a cláusula de controle diferido como um recurso ultrapassado, já que acreditava que o Pão de Açúcar havia se tornado uma empresa mais forte e capaz de seguir caminhos diferentes.

Determinando a mudar a situação, Diniz decidiu tentar uma jogada ousada: uma fusão com o Carrefour Brasil. A operação, se concretizada, criaria um gigante do varejo brasileiro, com receita de US$40 bilhões, e consolidaria Diniz como figura de liderança no setor.

Abílio articulou essa fusão em segredo, contando com o apoio do BNDESPar, braço de investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O BNDESPar prometeu um aporte de R$ 4 bilhões para viabilizar a transação, o que deu mais força à proposta de Diniz. Para o BNDES, a fusão fazia sentido, pois criaria uma das “Campeãs Nacionais”, capaz de competir globalmente e fortalecer o setor de varejo no país.

Ao tentar uma fusão com o Carrefour, ele buscava criar um novo conglomerado que mudaria a estrutura de controle e, assim, impediria o Casino de exercer a cláusula de controle diferido. Essa manobra poderia ter permitido a Diniz manter uma posição de controle na nova empresa resultante da fusão.

A Reação do Casino e a Tensão Crescente

Capa da ISTOÉ Dinheiro de 01/06/2011

Quando Jean-Charles Naouri descobriu as negociações para a fusão, ficou furioso. Para o Casino, essa tentativa de fusão violava as cláusulas de não concorrência e exclusividade do contrato de 1999. Naouri considerou a manobra de Diniz não apenas como uma traição pessoal, mas também como uma tentativa ilegal de contornar o controle previsto para 2012.

Naouri imediatamente acionou o tribunal arbitral de Paris, buscando impedir a fusão e responsabilizar Diniz por violação de contrato. A decisão preliminar do tribunal foi favorável ao Casino, bloqueando o avanço da fusão e levando a disputa para uma nova fase, desta vez nas esferas diplomáticas e políticas.

Bastidores da Disputa Diplomática e Política

A batalha pelo controle do Pão de Açúcar envolveu não apenas advogados e acionistas, mas também os governos do Brasil e da França. O governo francês apoiou o Casino, alegando que a tentativa de Diniz prejudicava uma empresa nacional francesa. Por outro lado, o BNDES e o governo brasileiro defenderam a fusão pois ela iria criar uma multinacional com sede no Brasil.

Nos bastidores, a disputa foi marcada por articulações diplomáticas, reuniões secretas e tentativas de mediação que envolveram ministros e embaixadores de ambos os países. A imprensa brasileira e francesa cobriu o caso intensamente, transformando a batalha em um evento midiático de grande porte.

Uma Solução Impossível?

No início de 2012, conforme previsto no contrato, o Casino assumiu o controle do Pão de Açúcar, comprando a ação simbólica e tomando o controle da holding Wilkes. Abilio, no entanto, não cedeu facilmente. Ele abriu um novo processo arbitral em dezembro de 2012, acusando o Casino de violar suas prerrogativas como presidente do conselho. A disputa já durava mais de dois anos e todos estavam perdendo – desde os acionistas e investidores até os milhares de funcionários do grupo, que temiam por seus empregos em meio a uma disputa sem fim.

Foi nesse cenário caótico que Abilio decidiu recorrer a uma ajuda externa. Por sugestão de sua esposa, Geise Diniz, ele contatou William Ury, um renomado negociador e professor de Harvard, conhecido por solucionar disputas aparentemente insolúveis. Ury, especialista em negociações complexas, foi trazido ao Brasil com a missão de encontrar uma saída para o impasse.

O Papel de William Ury e a Solução Relâmpago

William Ury e Abílio Diniz

Em maio de 2013, Ury chegou ao Brasil e logo se reuniu com Abilio em sua casa na Praia da Baleia. Sua primeira missão foi entender o que realmente estava em jogo. Em seu livro “Como Chegar ao Sim com Você Mesmo”, Ury conta como ajudou Abilio a identificar seu verdadeiro desejo: não se tratava apenas de manter o controle do Pão de Açúcar, mas de encontrar a liberdade para seguir novos caminhos. “O que você realmente quer?”, perguntou Ury a Abilio. “Liberdade”, respondeu o empresário.

Com esse insight em mente, Ury iniciou uma série de negociações intensas com representantes do Casino em São Paulo e Paris. O objetivo era encontrar um terreno comum que encerrasse as disputas judiciais e permitisse a Abilio seguir em frente. O resultado foi um acordo surpreendentemente simples, costurado em apenas cinco dias, entre os dias 2 e 6 de setembro de 2013.

Os Termos do Acordo Final

Reportagem da Valor Econômico

O acordo tinha apenas 6 itens descritos em 2 páginas. Abilio concordou em trocar suas ações ordinárias por preferenciais, sem direito a voto, e renunciou ao cargo de presidente do conselho do Pão de Açúcar. Em troca, Naouri abriu mão da cláusula de não concorrência, permitindo que Abilio investisse livremente em novos negócios. Com isso, todas as ações judiciais e arbitrais foram encerradas.

Na prática, Abilio perdeu o controle do Pão de Açúcar, mas ganhou a liberdade para se aposentar. Mas Diniz não ficou de fora por muito tempo. Em 2014, ele comprou uma participação significativa no Carrefour Brasil e, logo depois, se tornou o terceiro maior acionista do Carrefour global. Abilio voltou ao setor que tanto amava, agora com o objetivo de rivalizar diretamente com o Casino, e passou a frequentar Paris, onde se aproximou de desafetos de Naouri, como Alexandre Bompard (CEO do Carrefour) e Philipe Houzé (CEO da Galeries Lafayette).

No fim, Naouri também enfrentou seus próprios problemas. Em 2023, em meio a uma grave crise financeira no Casino, ele abandonou a gestão do grupo. Abilio, já com 87 anos, tentou ajudar seu velho rival na França, mostrando que, mesmo após anos de conflitos, os laços de negócios podem, em algum momento, superar as disputas pessoais.