
Em meio à maior transformação da história da logística brasileira, os Correios acumulam derrotas sucessivas. O que um dia foi sua maior fortaleza, uma rede nacional com mais de 6.000 agências e presença em todos os municípios do país, hoje pesa como um custo difícil de sustentar. A estatal virou um operador nacional que, em vez de transformar capilaridade em escala, converteu alcance em passivo.
Detentora do monopólio legal sobre o serviço postal, a empresa mergulhou num ciclo de ineficiência, endividamento e perda de mercado que parece cada vez mais difícil de reverter. A deterioração se acentuou em 2024, quando o saldo em caixa da companhia encolheu 83%, um alerta silencioso que escancarava a proximidade de um colapso.
No primeiro trimestre de 2025, os números deixaram de ser apenas sintoma e passaram a representar o diagnóstico final: um prejuízo de R$1,7 bilhão, alta de 115% em relação ao mesmo período do ano anterior, foi o pior resultado desde 2017. Já são 11 trimestres consecutivos no vermelho, nove deles sob a gestão de Fabiano Silva, indicado no início do terceiro mandato de Lula.
Os números resumem o colapso: um fluxo de caixa em erosão, queda de receitas, aumento dos custos fixos e uma perda progressiva de relevância. Ao contrário do que muitos imaginam, os Correios não operam no azul nem mesmo com o monopólio garantido por lei. E já não entregam sequer metade das encomendas do e-commerce nacional.
A pergunta que fica é simples: o que exatamente os Correios ainda entregam?
Um império que virou fardo
O caixa da empresa secou, depois de consumir, em 2024, praticamente todas as suas reservas financeiras, recorrendo a resgates de aplicações apenas para pagar despesas operacionais.
De lá para cá, a sangria só acelerou, em abril de 2025, a direção cortou férias, reduziu jornadas e anunciou um plano emergencial para enxugar R$ 1,5 bilhão em despesas ainda neste ano. Em maio, uma greve nacional. Em junho, atrasos em pagamentos a fornecedores e hospitais suspenderam o atendimento a funcionários pelo Postal Saúde.
A ADCAP, associação dos profissionais de carreira, não mediu palavras: chamou a empresa de “pré-insolvente”, culpando o loteamento político da diretoria e a ausência de gestão técnica. O governo rebateu, como sempre, apontando o dedo para a gestão anterior. Mas o que importa mesmo é o buraco: se nada mudar, o déficit acumulado pode passar de R$5 bilhões até dezembro. É o Estado prestes a ser fiador de um modelo que já não entrega nem a si mesmo.
Um monopólio que sangra
O cerne do colapso financeiro é a perda de mercado. Os Correios ainda detêm o monopólio legal sobre cartas e impressos simples, um segmento que encolhe ano a ano com o avanço do digital. Mas o grosso do faturamento (mais de 70%) vem das encomendas, especialmente as ligadas ao comércio eletrônico.
Foi aí que o castelo desmoronou, em 2013, segundo a ABComm, os Correios respondiam por 81% das entregas do e-commerce brasileiro. Em 2019, essa fatia caiu para 62,5%. Em 2024, os Correios estavam reduzidos a 25% do mercado.
O impacto é direto, a Amazon, por exemplo, já entrega a maioria dos pacotes com frota e centros próprios. Desde 2019, ampliou sua infraestrutura logística e reduziu drasticamente a dependência dos Correios. O Mercado Livre, que em 2019 ainda usava a estatal como principal distribuidora, hoje realiza 90% das entregas com malha própria. O plano é atingir 3.500 cidades com entrega em até 24h até o fim de 2025.
Outros players também avançaram, a Jadlog, controlada pela francesa GeoPost, dobrou sua presença no B2C. A Total Express firmou acordos com grandes varejistas e marketplaces. A Azul Cargo, que teve uma joint venture com os Correios em 2018, opera hoje de forma independente, com foco em cidades médias. E a Loggi, avaliada em mais de R$6 bilhões, criou uma rede inteligente de entregadores autônomos e já cresce 25% ao ano em volume de entregas.
Startups chinesas como Shopee e Shein também entraram no jogo com estruturas próprias ou parcerias logísticas exclusivas. Resultado: a estatal perdeu não só volume, mas também sua principal vantagem competitiva, a capilaridade.
Uma estatal analógica em um mercado digital
O retrato atual é constrangedor, em pleno 2025, os Correios ainda enfrentam escassez de insumos básicos: tinta de impressora, papel, sacolas. Agências suspenderam atendimento por falta de envelopes. O sistema de rastreio teve pane nacional em maio.
Internamente, processos são manuais. Atualizações de status demoram horas, não há integração nativa com marketplaces, nem API robusta. Para quem vende online, usar os Correios é escolher operar no escuro.
O projeto de digitalização, orçado em R$ 600 milhões, foi engavetado parcialmente em 2023 por falta de recursos. Houve anúncio de R$1,6 bilhão em investimentos em tecnologia e frota nos últimos dois anos, mas nada indica ganho de eficiência relevante. O app é limitado. O marketplace “Mais Correios” chegou tarde. E ainda é irrelevante.
Enquanto isso, lockers automatizados, inteligência de rotas, entregas no mesmo dia, tudo isso se tornou padrão no setor privado. A estatal opera como se estivéssemos em 2008, mas estamos em 2025.
A greve que parou o país
Em maio de 2025, a crise se transformou em colapso, após semanas de atrasos salariais, suspensão de benefícios e cortes internos, os funcionários da estatal decretaram greve nacional. A paralisação afeta toda a cadeia: encomendas, remédios, correspondências judiciais e até serviços públicos. O Sedex 10, Sedex 12 e Sedex Hoje foram suspensos em diversas regiões.
O movimento também foi impulsionado por atrasos no repasse ao plano de saúde (Postal Saúde), que acumulava dívida de R$400 milhões, e pela suspensão de férias e corte de jornada anunciados em abril. A FENTECT aprovou greve por tempo indeterminado caso as negociações não avançassem.
A resposta da empresa foi um acordo de emergência: pagamento escalonado de benefícios atrasados e promessa de criação de um grupo de trabalho para “discutir modernização”. Nenhuma meta, nenhum orçamento, apenas sobrevida.
Gestão loteada, estratégia ausente
A instabilidade é agravada por um modelo de gestão que favorece interesses políticos. Com cerca de 90 mil funcionários e uma estrutura hierárquica inchada, os Correios têm pouca autonomia para reagir ao mercado. Tarifas precisam ser autorizadas pelo governo, reestruturações dependem de aprovação sindical e cargos estratégicos são distribuídos a partidos da base.
O atual presidente, Fabiano Silva dos Santos, foi indicado por Lula com apoio de sindicatos. Sua gestão paralisou estudos de privatização, suspendeu parcerias com o setor privado e priorizou, nas palavras de um ex-executivo da empresa, “as demandas internas sobre o plano estratégico”.
Em abril, a ADCAP — associação de funcionários de carreira — emitiu uma nota pública acusando a nomeação de lideranças despreparadas, pautadas por critérios partidários. Segundo a entidade, a empresa estaria em situação de pré-insolvência. A estatal respondeu dizendo que herdou uma estrutura fragilizada da gestão anterior, acusando-a de “sucateamento deliberado visando a privatização”.
Uma conta que não fecha há anos
Os Correios operam sob uma estrutura de custos incompatível com a realidade do mercado. Salários indexados, benefícios generosos, licitações engessadas, obrigações de prestação universal e um passivo previdenciário que drena caixa. O Postalis, fundo de pensão dos funcionários, precisou de aportes bilionários, o Postal Saúde está em crise.
A folha caiu de 115 mil funcionários em 2013 para cerca de 86 mil em 2024, mas os cortes vieram à custa de perdas de expertise e não resolveram o problema estrutural. Entre 2015 e 2016, os prejuízos somaram R$3,5 bilhões. De 2017 a 2021, houve um breve alívio, com lucros impulsionados pela explosão de encomendas na pandemia, mas os resultados positivos mascararam o subinvestimento.
Com a queda de receitas a partir de 2022 e a redução dos pacotes internacionais (afetados pela “taxa das blusinhas” de 2024), o desequilíbrio voltou. A atual direção projeta economizar R$1,5 bilhão em 2025 com cortes emergenciais. Mas, sem aumento de receita ou reestruturação profunda, trata-se apenas de fôlego curto.
Estatuto engessado, futuro bloqueado
A forma jurídica da empresa, uma estatal 100% pública, impõe restrições severas. Os Correios não podem ter sócios, não podem emitir ações, não podem criar subsidiárias com agilidade. Enquanto Amazon ou Mercado Livre captam bilhões em rodadas de investimento, a ECT depende do orçamento público ou da própria geração de caixa.
A tentativa de mudar isso foi feita em 2021, quando o BNDES estruturou um projeto de privatização com concessão parcial e abertura de capital. A proposta, no entanto, foi engavetada em 2023 com a promessa de “recuperação com base no papel social”.
Hoje, os entraves jurídicos continuam. A empresa permanece presa entre a obrigação de cobertura universal e a falta de liberdade empresarial. Um limbo que impede qualquer modernização real.
Um plano de negócios sem lastro
Nos últimos dois anos, a empresa tentou lançar novas frentes, anunciou um marketplace próprio (“Mais Correios”), serviços de telefonia móvel (Correios Celular), produtos financeiros e uma conta digital, mas nenhuma dessas iniciativas vingou com tração relevante. Especialistas ouvidos pela Bastidores apontam falta de foco, ausência de metas claras e dificuldade de execução em uma organização que opera com processos da década passada.
Segundo levantamento da Accenture, os Correios precisariam investir R$2 bilhões por ano para modernizar sua infraestrutura e competir em igualdade. Em 2023 e 2024, o investimento ficou próximo de R$ 1,6 bi, insuficiente frente às deficiências acumuladas.
O que está em jogo
A derrocada dos Correios expõe algo maior: o fracasso de um modelo estatal que resistiu à mudança, acreditando que sua posição histórica bastaria para garantir relevância. Não foi a privatização que destruiu a empresa, foi a ausência dela. Ou, ao menos, a ausência de um plano de transição sério, estruturado e comprometido com a eficiência.
Em 2025, a estatal ainda possui capilaridade incomparável. Está presente em todos os municípios do país, mas a cada trimestre que passa, essa presença se torna menos estratégica e mais onerosa. A confiança dos consumidores foi perdida, o mercado foi embora e o custo da paralisia será, como sempre, pago pelo contribuinte.
Se nenhuma decisão for tomada nos próximos meses, os Correios não se tornarão apenas uma empresa ineficiente. Serão lembrados como o maior cemitério logístico do Brasil e um símbolo de tudo que o setor público pode desperdiçar quando confunde estabilidade com estagnação.