Como as Grandes Famílias Empresariais Estão Redesenhando a Governança para a 4ª e 5ª Geração

No Brasil, grandes impérios familiares chegaram ao século XXI acumulando histórias de expansão, sucessão — e disputas que se tornaram lendas corporativas. Mas um novo desafio começa a ganhar protagonismo nos conselhos: a perpetuação do controle para uma geração de herdeiros que já não se conhece pelo nome, mas pelo sobrenome.
Enquanto o número de descendentes se multiplica, Itaúsa, Votorantim, Moreira Salles e Safra se reinventam para evitar o destino comum de tantos impérios familiares: a dispersão patrimonial e a perda do comando.

O Fim do Círculo Fechado
Até os anos 1980, as decisões estratégicas de conglomerados como Itaú, Votorantim ou Serveng cabiam a poucos homens sentados à mesma mesa — quase sempre irmãos, primos e, no máximo, cunhados.
A sucessão era direta: um patriarca passava o bastão ao filho, que logo agregava irmãos e cunhados, em uma ciranda de cargos e poderes divididos entre poucos nomes.
O tempo, porém, cobrou seu preço: as famílias cresceram, os patrimônios se diluíram e os negócios exigiram governança. Em 2024, há grupos que já somam mais de 200 herdeiros — muitos deles com vidas e negócios próprios, e nem todos interessados em seguir a tradição dos avós.
Diante desse cenário, o velho círculo fechado perdeu sentido.
Hoje, manter o controle não é mais questão de laços de sangue, mas de estruturas jurídicas, acordos de acionistas, conselhos independentes e rituais de preparação para a sucessão.
As Novas Arquiteturas de Poder
O laboratório da Itaúsa

No caso da Itaúsa, holding dos Setubal e Villela, a governança foi sendo desenhada a ferro e fogo, em parte impulsionada pela experiência amarga do passado — quando desentendimentos familiares quase minaram a expansão do grupo. A holding foi uma das pioneiras a implantar conselhos de administração robustos, separando de forma rígida o papel dos familiares e dos executivos profissionais.
Hoje, os membros da família não podem ocupar cargos executivos nas controladas, como Itaú e Duratex, e seu acesso aos conselhos depende de critérios objetivos, revisados por headhunters independentes. A sucessão, antes um tabu, virou assunto de governança: existe um processo formal de desenvolvimento de herdeiros, com mentorias, avaliação de competências e rodízio em comitês estratégicos. Caso um familiar decida vender sua participação, um acordo de liquidez interna permite que outros ramos comprem as ações antes que o capital seja pulverizado ou exposto ao mercado. A criação do chamado “protocolo de família” também estabeleceu regras claras para mediar disputas, disciplinar a distribuição de dividendos e até limitar a exposição a negócios paralelos de herdeiros.
A fortaleza da Votorantim

Na Votorantim, o processo foi menos linear — moldado por gerações que, por muito tempo, associavam comando à figura do patriarca. A virada se deu no início dos anos 2000, quando o grupo já estava na terceira geração, e as divergências de visão entre herdeiros ameaçavam a coesão do conglomerado. O clã Ermírio de Moraes criou, então, uma governança profissionalizada: hoje, são mais de 170 herdeiros, divididos entre a quarta e a quinta geração, e todos são afastados da gestão executiva das controladas.
O controle permanece 100% familiar, mas a administração da holding foi entregue a profissionais de mercado. O conselho de administração, com sete membros, reúne maioria independente, e as decisões estratégicas precisam do aval da Hejoassu — holding familiar, cujo conselho tem 12 membros e atua como última instância para vetar ou aprovar movimentos relevantes. O protocolo de família é minucioso: prevê desde a avaliação de herdeiros para participação em conselhos, a realização periódica de assembleias para alinhamento e, mais recentemente, criou um fundo de liquidez dedicado — permitindo que qualquer acionista saia do grupo sem litigância, com regras de preço e prazo predefinidas.
A governança vai além da estrutura: os mais jovens passam por programas internos de formação, com cursos, mentorias e rodízio em áreas do grupo, além de participação obrigatória em comitês de inovação e sustentabilidade. Hoje, 14 membros da quinta geração já atuam em conselhos e comitês, numa rotação projetada para diluir poder e estimular o consenso.
O pragmatismo silencioso dos Moreira Salles

No caso dos Moreira Salles, donos da Brasil Warrant e do controle do Itaú Unibanco, a sucessão sempre foi tratada de forma quase discreta — mas a estrutura de governança é, na prática, uma das mais sofisticadas do país. O comando do conglomerado sempre foi organizado em torno de um conselho familiar restrito, responsável apenas pelas diretrizes de longo prazo, sem interferir no dia a dia do banco ou das controladas.
A governança se apoia num estatuto interno que limita o envolvimento de familiares em cargos operacionais e define critérios objetivos para assento em conselhos. A liquidez, sempre tema sensível, é tratada por meio de fundos internos: qualquer herdeiro pode vender sua fatia a um preço determinado por laudo independente, sem abrir a porta para terceiros. O grupo também mantém, desde a década passada, um sistema de auditoria anual feita por firmas independentes, avaliando tanto a gestão das empresas quanto o cumprimento do protocolo familiar — mecanismo que se mostrou essencial para evitar conflitos de ramos ou litígios silenciosos.
O processo de formação da nova geração é rigoroso: além de formação acadêmica e experiências internacionais, é preciso passar por mentoria de conselheiros e rodízio em comitês. O grupo mantém encontros regulares entre os herdeiros para alinhamento estratégico e discussões sobre o legado — a intenção é evitar que as próximas gerações percam o “sentido de missão” que moldou o grupo.
O conservadorismo adaptado dos Safra

Entre os Safra, o desafio de sucessão foi agravado pela dispersão internacional da família e pela característica reservada dos controladores. Após a morte de Joseph Safra, o comando foi dividido entre diferentes ramos, com a implementação de um protocolo de família que define as competências e limites de cada herdeiro. A atuação em negócios paralelos é proibida, e a distribuição de lucros é feita com base em regras objetivas, para evitar disputas por dividendos.
A administração das empresas do grupo é feita por executivos de mercado, com os familiares atuando apenas nos conselhos, sempre sob a avaliação de consultorias externas. O grupo adota uma política de liquidez restrita — herdeiros só podem sair em eventos predeterminados, como falecimento ou sucessão, e a compra das participações é feita por um fundo próprio, impedindo a pulverização do capital. A auditoria independente, anual, é rotina desde os anos 2000 e vale tanto para empresas quanto para conselhos e protocolos familiares.
Além disso, a família mantém um conselho de “mediação silenciosa”, no qual conflitos são tratados com ajuda de mediadores profissionais, evitando a judicialização dos temas — uma prática importada de dinastias europeias e que já evitou disputas públicas nos últimos anos.
Bastidores dos Protocolos
Nos bastidores, o grande desafio é outro: como manter a coesão em famílias cada vez mais fragmentadas?
A resposta tem vindo em forma de protocolos familiares, documentos que, na prática, funcionam como “constituições” privadas — com cláusulas para governança, política de dividendos, regras de ingresso em cargos e até soluções para disputas internas.
Em muitos desses grupos, herdeiros que desejam vender sua participação têm direito de saída facilitada, mas só podem negociar com fundos designados pela família ou pelo próprio grupo, evitando a entrada de estranhos no capital.
Os protocolos também preveem rituais de preparação de novas gerações: visitas guiadas, programas de mentoria, estágios em outras empresas antes de ocupar qualquer posição relevante no grupo familiar, além de regras explícitas sobre sucessão e distribuição de lucros.
Há casos em que acordos obrigam herdeiros a abrir mão de voto ou de cargos executivos caso vivam no exterior, casem com estrangeiros ou se tornem figuras públicas sem aprovação prévia — tudo para evitar conflitos de imagem ou interesses cruzados.
Profissionais, Não Só Família
Outro traço marcante da nova governança é a presença de profissionais externos em posições-chave.
Na Nexa, por exemplo, o CEO não é membro da família Ermírio de Moraes há mais de uma década. No Banco Itaú, desde 2021 não há Setubal ou Moreira Salles no comando executivo.
A razão é clara: empresas desse porte precisam de talento, agilidade e capacidade de adaptação — atributos que muitas vezes ultrapassam a fronteira do sobrenome.
Além disso, conselheiros independentes servem como árbitros silenciosos em disputas internas, reduzindo o risco de que pequenas divergências familiares se transformem em batalhas bilionárias.
O Preço das Brigas
A história recente desses grupos mostra que os maiores riscos não vêm de fora — mas de dentro.
Ações judiciais, disputas por dividendos, conflitos sobre quem deve comandar conselhos ou operar negócios paralelos já custaram bilhões em valor de mercado e geraram turbulências difíceis de reverter.
No passado, episódios como a disputa entre herdeiros dos grupos Gafisa, Rossi, Rede Globo, Odebrecht e Pão de Açúcar serviram de alerta: sem protocolos claros, a tendência é a pulverização patrimonial, vendas forçadas e, no limite, a perda do controle.
Por isso, as novas gerações têm buscado inspiração em modelos internacionais das famílias Agnelli, Ford e Walton, mas adaptados à realidade brasileira: mais informalidade, um círculo de confiança pequeno, mas regras claras para evitar litígios.
O Futuro: Da Família ao Family Office
Nos próximos anos, a tendência é que a administração direta das empresas continue migrando para profissionais externos, enquanto as famílias se concentram na gestão dos family offices — estruturas criadas para proteger, investir e multiplicar o patrimônio coletivo.
Segundo estimativas do mercado, apenas em São Paulo há hoje mais de 80 family offices controlados por dinastias fundadoras de grandes empresas brasileiras, gerindo fortunas que, somadas, superam R$500 bilhões.
Para muitos desses grupos, o sucesso já não se mede apenas em crescimento, mas em perpetuação — garantir que, mesmo com a dispersão dos laços de sangue, o poder decisório permaneça alinhado e o império sobreviva à prova do tempo.