Por dentro do Setor de Operações Estruturadas, o “banco da propina” que movimentou quase US$800 milhões e derrubou um império.

SÃO PAULO — Em qualquer grande empresa multinacional, departamentos como finanças, marketing e compliance são considerados essenciais para manter o funcionamento do negócio. Mas, dentro da Odebrecht, um setor trabalhava nas sombras, sem publicidade, sem registros oficiais e sem sequer constar nos organogramas corporativos.
Chamado internamente de Setor de Operações Estruturadas, essa unidade secreta operava como um banco clandestino dentro da maior construtora do Brasil. Seu único objetivo: organizar, planejar e executar o pagamento de propinas a políticos, agentes públicos e intermediários em pelo menos 12 países.
A descoberta desse setor, feita pela Operação Lava Jato em 2015, chocou até os investigadores mais experientes. Não era apenas um esquema de corrupção tradicional, baseado em envelopes recheados de dinheiro vivo. A Odebrecht criou um sistema empresarial de corrupção tão sofisticado que envolvia softwares exclusivos, servidores criptografados, offshores em paraísos fiscais e um controle financeiro meticuloso digno de bancos internacionais.
O setor funcionou por mais de uma década e movimentou cifras bilionárias sem que nenhuma autoridade notasse. Mas como um sistema tão complexo e eficiente foi montado? Como essa estrutura operava no dia a dia? E como, no fim, tudo desmoronou?
Este é o relato de como a Odebrecht transformou a corrupção em um processo corporativo altamente eficiente — e de como essa engrenagem veio abaixo.
A Criação do Setor Secreto: Um Banco Dentro da Empresa
O Setor de Operações Estruturadas não nasceu da noite para o dia. Ele foi sendo moldado ao longo dos anos, conforme a Odebrecht expandia sua influência e percebia a necessidade de sofisticar seus pagamentos ilícitos.
Nos anos 1980 e 1990, os pagamentos de propina ainda seguiam o método tradicional: dinheiro vivo, intermediários e remessas feitas sem muito planejamento. Porém, com a globalização e o crescimento exponencial da empresa nos anos 2000, esse modelo ficou inviável.
A Odebrecht precisava de algo mais profissional e seguro. Assim, por volta de 2006, o setor foi oficialmente criado, com uma estrutura dedicada exclusivamente à corrupção.
Esse “banco clandestino” era operado com rigor técnico. Cada pagamento era planejado, categorizado e registrado em sistemas próprios, de maneira a evitar rastros óbvios. Nada era deixado ao acaso.
Os Executivos-Chave: Quem Tocava a Máquina?

Diferente do que se poderia imaginar, o setor não era composto por lobistas amadores ou operadores políticos. Os responsáveis pela engrenagem eram executivos altamente qualificados, com experiência no mercado financeiro e expertise em operações internacionais.
Os dois principais nomes do setor foram Hilberto Mascarenhas da Silva Filho, diretor do departamento, e Fernando Migliaccio, responsável pelas transações internacionais. Ambos possuíam um domínio técnico sobre engenharia financeira, criando estratégias dignas de grandes bancos de investimento para ocultar transações ilícitas.
Eles montaram um time de contadores, advogados e especialistas em lavagem de dinheiro, que operavam dentro e fora do Brasil. O departamento funcionava sem nenhum vínculo com as áreas administrativas tradicionais da Odebrecht, e nem mesmo outros executivos da empresa tinham acesso às suas operações.
Drousys e MyWebDay: Os Softwares da Corrupção
Para gerir pagamentos clandestinos sem levantar suspeitas, o setor criou dois sistemas de TI exclusivos, que funcionavam como um ERP da corrupção:
1. Drousys → Servidor criptografado usado para comunicação interna entre os operadores do setor e os intermediários. Funcionava como um “WhatsApp da propina”, permitindo conversas seguras entre os envolvidos.
2. MyWebDay → O sistema financeiro do esquema. Nele, estavam registrados todos os pagamentos de propina, com datas, valores e beneficiários. Era um “banco digital” que gerenciava contas secretas e operações com offshores em paraísos fiscais.
Os dois sistemas foram desenvolvidos por programadores contratados exclusivamente para essa função e eram inacessíveis para qualquer funcionário comum da Odebrecht. Os acessos eram altamente restritos, e os nomes dos beneficiários eram registrados em codinomes, como “amigo”, “italiano” e “pós-itália”.
O Fluxo da Corrupção: Como os Pagamentos Eram Feitos

O esquema da Odebrecht seguia uma cadeia estruturada de corrupção, com um processo meticuloso de execução. O fluxo operacional se desenrolava em três etapas:
1. Demanda e Aprovação → Políticos, partidos ou agentes públicos indicavam os valores que deveriam receber. A solicitação passava por uma “análise” dentro do setor para garantir que a propina fosse paga corretamente.
2. Execução do Pagamento → O dinheiro saía de contas offshores mantidas pela Odebrecht em bancos europeus, caribenhos e asiáticos. Para disfarçar a origem, os valores passavam por várias transferências antes de chegar ao destino final.
3. Entrega ou Depósito → O pagamento era feito de três maneiras principais:
• Depósito em conta de offshores vinculadas aos beneficiários.
• Dinheiro vivo, retirado por intermediários e entregue fisicamente.
• Faturas fictícias, por meio de contratos de consultoria falsos.
Esse modelo garantiu que bilhões de dólares fossem distribuídos sem levantar suspeitas por mais de uma década.
O Colapso: Como Tudo Veio Abaixo?
O esquema só começou a desmoronar em 2015, quando a Operação Lava Jato prendeu executivos da Petrobras. No rastro da investigação, surgiram os primeiros indícios de que as empreiteiras eram peças-chave na engrenagem de corrupção.
O primeiro grande erro da Odebrecht foi acreditar que sua estrutura era impenetrável. Quando os procuradores da Lava Jato interceptaram e-mails internos, identificaram documentos e registros no Drousys. Isso foi o ponto de virada.
As investigações revelaram o papel central do Setor de Operações Estruturadas e levaram à prisão de Marcelo Odebrecht, CEO do grupo. O empresário resistiu por meses, mas, diante das provas, acabou aderindo à delação premiada.
Quando o MyWebDay foi recuperado, ficou evidente o tamanho da corrupção. Planilhas detalhadas mostraram milhares de pagamentos ilícitos, com valores e beneficiários. A Odebrecht entregou mais de 77 delatores, e seus executivos confirmaram o funcionamento do setor clandestino.
Em 2016, a empresa fechou o maior acordo de leniência da história, comprometendo-se a pagar R$ 8,5 bilhões em multas.
O Fim do Setor e o Impacto no Brasil
A revelação do Setor de Operações Estruturadas mudou para sempre a forma como a corrupção corporativa é vista no Brasil. O esquema montado pela Odebrecht não apenas movimentou cifras astronômicas, mas demonstrou o nível de sofisticação que uma empresa pode atingir ao institucionalizar pagamentos ilícitos.
Após o escândalo, a Odebrecht entrou em recuperação judicial, perdeu contratos e viu seu império ruir. Hoje, sob o nome Novonor, tenta se reconstruir sem o peso do passado.
Mas o Setor de Operações Estruturadas se tornou um caso de estudo global sobre como um esquema de corrupção pode ser tão eficiente quanto um modelo de negócios tradicional.
E, por fim, provou que até mesmo a engrenagem mais sofisticada pode um dia se quebrar.