Caso Marfrig: O Crescimento que Quase Saiu do Controle

Nos bastidores da indústria de alimentos, a trajetória da Marfrig Global Foods é um dos casos mais emblemáticos de crescimento descontrolado seguido por uma reestruturação drástica. A empresa, que surgiu de um frigorífico modesto no interior do Mato Grosso do Sul, expandiu-se rapidamente ao longo dos anos 2000, acumulando ativos e endividamento a uma velocidade impressionante.

Por trás dessa história está Marcos Molina, fundador e principal acionista da Marfrig, um empresário de perfil arrojado, que adotou uma estratégia agressiva de aquisições para transformar a companhia em um dos maiores grupos do setor de carnes do mundo. O problema? Esse crescimento acelerado veio a um custo alto: em poucos anos, a empresa viu sua dívida explodir, enfrentou prejuízos recorrentes e chegou perto de um colapso financeiro.

O cenário exigia uma reação rápida. Então, Molina mudou completamente sua abordagem e adotou uma estratégia defensiva para salvar a empresa. Vendeu ativos, reestruturou dívidas, reposicionou a Marfrig no mercado e, contra todas as expectativas, conseguiu reverter uma crise que parecia irreversível.

Esta é a história de como a Marfrig quase quebrou – e como Marcos Molina conseguiu dar uma reviravolta e recolocar a empresa no caminho do crescimento.

O Surgimento e a Expansão Agressiva

A trajetória da Marfrig começou em 2000, quando Marcos Molina arrendou seu primeiro frigorífico em Bataguassu, Mato Grosso do Sul. O momento era oportuno: o Brasil se firmava como o maior exportador de carne bovina do mundo, e frigoríficos como JBS e Minerva aproveitavam essa expansão. A Marfrig não ficou para trás. Entre 2006 e 2010, a empresa gastou mais de R$10 bilhões em aquisições, expandindo sua operação para carne suína, frango e alimentos processados.

Frigorífico de Bataguassu

As compras foram emblemáticas e a lista é enorme. Em outubro de 2006, adquiriu a maior empresa de carnes uruguaia, a Tacuarembó, por US$35 milhões. Um ano depois, também no Uruguai, Molina comprou o frigorífico La Caballada por US$26 milhões. Com a compra, a Marfrig passou a ser a maior exportadora de carnes do Uruguai. Ainda em 2007, a empresa adquiriu por US$266,8 milhões a argentina Quickfood.

Em junho de 2008, comprou a maior empresa alimentícia da Irlanda do Norte, a Moy Park, por US$680 milhões. No mesmo período a Marfrig comprou a Seara da Cargill, por US$706 milhões. Em 2010, fez sua maior compra a americana Keystone Foodsprincipal fornecedora de carne para o McDonald’s, Subway e KFC nos EUA por US$1,26 bilhão.

Depois de todas essas aquisições, o faturamento da empresa saltou de R$3 bilhões em 2006 para mais de R$20 bilhões em 2010, o que tornou a Marfrig a maior exportadora de frangos e suínos, além de se transformar na segunda maior companhia do setor no país.

O Peso das Aquisições e a Crise de Endividamento

O crescimento, porém, veio acompanhado de uma dívida igualmente expressiva. A alavancagem da empresa disparou, a dívida saltou de R$3 bilhões, em 2008, para R$12 bilhões em 2013. O cenário macroeconômico também começou a se tornar desfavorável. A volatilidade cambial afetava os custos de produção, o preço do milho – fundamental para a alimentação do gado – subia de forma acelerada, e a concorrência com outras grandes empresas, como a própria JBS e a Minerva, pressionava as margens. Com um endividamento que chegava a quase 11 vezes o EBITDA, a empresa passou a ter dificuldades para pagar os juros da dívida e manter um fluxo de caixa positivo.

O peso das aquisições começou a aparecer nos resultados. A Keystone Foods, que parecia ser um bom ativo, acabou se mostrando uma operação de margens apertadas, com necessidade constante de investimentos. A Moy Park, no Reino Unido, enfrentava altos custos operacionais e desafios regulatórios.

Já a Seara exigia pesados aportes para modernização das fábricas e expansão da produção. O resultado foi um ciclo de prejuízos sucessivos. Entre 2011 e 2017, a Marfrig registrou sete anos seguidos de perdas financeiras, que somaram R$4,2 bilhões e viu sua nota de crédito ser rebaixada pelas agências de risco, perdendo a confiança dos investidores.

O Plano de Reestruturação

Diante do risco de colapso, Molina precisou rever completamente sua estratégia e dar início a um plano de reestruturação. O primeiro passo foi vender ativos para reduzir o endividamento e melhorar a liquidez da empresa.

Em 2013, a Marfrig vendeu a Seara para a JBS por R$5,85 bilhões. Em 2015, foi a vez da Moy Park, também vendida para JBS, por US$1,5 bilhão. Já em 2018, a empresa acelerou sua reestruturação com a venda da Keystone Foods para a Tyson Foods por US$ 2,4 bilhões, sendo US$ 1,4 bilhão pagos em dinheiro e US$ 1 bilhão em dívidas assumidas pela Tyson.

Essas vendas ajudaram a aliviar a pressão financeira e a equilibrar suas operações. No entanto, a Marfrig ainda mantém um nível elevado de endividamento. Em 2024, sua alavancagem da operação de carne bovina atingiu 8,9 vezes o EBITDA, o que indica que a dívida continua sendo uma preocupação relevante para investidores e analistas.

Além da venda de ativos, a Marfrig passou a adotar um modelo operacional mais enxuto. A empresa implementou cortes de custos, otimizou a gestão de fábricas e frigoríficos e focou na melhoria da eficiência produtiva. O abastecimento de matéria-prima passou a ser mais rigoroso, reduzindo desperdícios e melhorando a rentabilidade da operação. Ao mesmo tempo, a exportação de carne bovina para a China foi ampliada, aproveitando a demanda crescente do país asiático por proteína animal.

Com o caixa reequilibrado, Molina mudou o foco da empresa para um segmento no qual via maior potencial de crescimento e margens mais elevadas: a produção de carne bovina premium.

A empresa passou a direcionar esforços para fortalecer sua operação de carne bovina nos Estados Unidos e América do Sul, investindo na modernização de seus frigoríficos e reforçando a estratégia de exportação para a Ásia.

Outra mudança de Molina foi o aumento gradual da participação da Marfrig na BRF, maior produtora de carne suína e de aves do Brasil. Em 2021, a Marfrig tornou-se a maior acionista da BRF, com mais de 30% de participação (hoje essa participação já é de 50%). A movimentação alimentou especulações sobre uma possível fusão entre as duas empresas, o que poderia criar um dos maiores conglomerados de alimentos do mundo.

Resultados

A nova estratégia começou a dar resultados, em 2018, a empresa teve seu primeiro lucro em 8 anos. Em 2024, a Marfrig registrou um faturamento de R$142 bilhões, um EBITDA de R$12,3 bilhões e um lucro líquido de R$1,3 bilhão. A venda desses ativos e a reestruturação aliviou a pressão financeira e ajudou a empresa a equilibrar suas operações. No entanto, a Marfrig ainda mantém um nível elevado de endividamento.

A Marfrig conseguiu evitar um cenário mais grave, mas sua alavancagem continua alta, e o mercado segue acompanhando com cautela seus próximos passos. O processo de recuperação ainda não está completo, e a empresa precisa consolidar sua posição para garantir uma trajetória mais sustentável.