Bunge e Cargill: Como Duas Multinacionais se Tornaram Donas do Agronegócio Brasileiro

O agronegócio brasileiro é uma das forças mais poderosas da economia nacional, responsável por quase 25% do PIB do país e por 49% das exportações. No entanto, por trás do sucesso do setor, um fato pouco discutido chama atenção: grande parte da produção de grãos, logística e comercialização está nas mãos de duas gigantes estrangeiras, a Bunge e a Cargill, que começaram como tradings globais, transformaram-se em peças centrais do agronegócio nacional, dominando desde a compra da safra até a exportação de grãos para China, Europa e Estados Unidos.

Juntas, essas empresas controlam boa parte da soja e do milho que saem do Brasil, um país que se tornou o maior exportador global dessas commodities. Sua influência vai além do comércio, elas operam esmagadoras, refinarias, terminais portuários, armazéns e têm participação em ferrovias. Seu poder é tão grande que, para muitos produtores, vender para Bunge ou Cargill não é uma escolha – é a única opção.

Mas como essas multinacionais chegaram a esse nível de domínio? Como, em um setor com grandes produtores e cooperativas, o poder acabou concentrado nas mãos de apenas duas companhias? 

A história começa há mais de um século, mas o seu impacto é sentido agora, nos preços, na logística e até nas decisões políticas que moldam o futuro do agronegócio brasileiro.

A Chegada de Bunge e Cargill ao Brasil

O Brasil sempre foi um país de vocação agrícola, mas até os anos 1970, sua produção de grãos era pequena comparada aos Estados Unidos e à Argentina. O salto veio com o avanço da fronteira agrícola para o Centro-Oeste, impulsionado por novas tecnologias e incentivos do governo, como a Embrapa. E foi nesse cenário de crescimento que Bunge e Cargill se consolidaram no país.

A Bunge, originalmente uma trading holandesa fundada em 1818, chegou ao Brasil no final do século XIX, focando no comércio de commodities e no setor de alimentos. Nos anos 1920, tornou-se uma das principais compradoras de trigo e fornecedoras de farinha de trigo do país, estabelecendo sua marca na indústria de alimentos com a criação de produtos como o óleo de cozinha Soya e a margarina Delícia. 

No entanto, o grande salto da empresa veio no século XX, quando percebeu o potencial da soja brasileira. Com a crescente demanda mundial pelo grão e a expansão da produção nacional, a Bunge investiu pesadamente no processamento de oleaginosas, construindo unidades esmagadoras de soja em estados estratégicos como Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul. A empresa também fortaleceu sua cadeia logística, adquirindo terminais portuários e construindo um dos maiores sistemas de armazenagem do país, permitindo que seus produtos chegassem de forma mais eficiente aos mercados internacionais.

Já a Cargill, uma empresa americana criada em 1865, desembarcou no Brasil apenas em 1965, mais de um século depois de sua fundação. Diferente da Bunge, que já tinha raízes fortes no mercado brasileiro, a Cargill chegou com uma estratégia agressiva para se tornar um dos maiores exportadores de soja e milho. Em pouco tempo, construiu uma vasta rede de armazéns e silos em estados-chave como Mato Grosso, Goiás e Paraná, garantindo uma vantagem logística sobre concorrentes menores e facilitando a exportação para a Europa e a China. 

Além disso, a empresa se diversificou, investindo na produção de óleos vegetais, ingredientes para a indústria alimentícia e até no setor de nutrição animal. Sua estratégia de integração vertical – controlando desde a originação da matéria-prima até a comercialização internacional – garantiu à Cargill um papel de destaque na cadeia do agronegócio brasileiro.

A Disputa Pelo Controle da Soja Brasileira

A soja se tornou a principal commodity do agronegócio brasileiro, e a luta pelo seu controle foi o que trouxe Bunge e Cargill ao topo da cadeia produtiva.

Nos anos 1990 e 2000, a produção de soja explodiu no Brasil. Em 1990, o país produzia 15 milhões de toneladas. Em 2023, esse número já chegava a 150 milhões de toneladas, fazendo do Brasil o maior exportador do mundo. Mas, para que essa soja chegasse aos mercados internacionais, era preciso uma estrutura robusta de escoamento – e foi isso que Bunge e Cargill passaram a dominar.

As duas empresas investiram alto em terminais portuários e armazéns, garantindo que os produtores brasileiros dependessem de sua infraestrutura para vender a safra. No Porto de Santos, maior corredor de exportação de grãos do Brasil, a Bunge tem uma das operações mais relevantes.  Além disso, a empresa possui operações robustas em Paranaguá (PR) e Rio Grande (RS), facilitando o embarque de grãos para Europa e Ásia.

Já a Cargill optou por ter um forte presença no Arco Norte, a nova rota do agro brasileiro. A empresa foi uma das pioneiras no investimento em terminais fluviais nos rios Tapajós e Amazonas, com unidades em Miritituba e Barcarena, no Pará, que permitem que a soja produzida no Mato Grosso seja transportada por hidrovias até os portos do Norte, reduzindo custos logísticos e encurtando o tempo de viagem até a China.

Além dos portos, Bunge e Cargill investiram pesado no modal ferroviário. Ambas têm acordos com a Rumo Logística e a VLI para garantir que as cargas de grãos cheguem aos terminais portuários com custos reduzidos, uma vantagem competitiva que limita a atuação de empresas menores.

A concentração logística criou um efeito dominó. Pequenos e médios produtores, sem estrutura para exportar diretamente, passaram a depender das duas tradings para vender sua safra. Além disso, os gigantes do setor de insumos, como Syngenta, Bayer e Mosaic, muitas vezes negociam fertilizantes e defensivos agrícolas diretamente com as grandes tradings, que, em troca, adiantam crédito para os produtores, garantindo que a safra seja vendida a elas antes mesmo do plantio. Esse modelo, chamado de “barter”, aumentou ainda mais a influência de Bunge e Cargill.

O resultado desse domínio logístico e comercial é claro nos números. Em 2023, das 102,3 milhões de toneladas de soja exportadas pelo Brasil, quase 40% passaram por Bunge e Cargill. Na exportação de milho, o cenário era semelhante.

A Nova Concorrente

Em 2014, uma transação de US$1,5 bilhão marcou o início de uma mudança silenciosa, mas profunda, no comércio de grãos brasileiro. A COFCO, maior trading de alimentos da China, comprava a Nidera, uma das principais comercializadoras de soja da Argentina, e a Noble Agri, braço agrícola do grupo Noble. A operação passou despercebida para muitos, mas, nos bastidores do agronegócio, foi interpretada como um sinal claro que os chineses não estavam mais dispostos a depender de intermediários.

A lógica da expansão era simples. A China já era, de longe, o maior comprador da soja brasileira, importando mais de 60% de toda a produção nacional. Mas, em vez de continuar negociando com intermediários como Bunge e Cargill, os chineses decidiram construir sua própria estrutura para controlar diretamente a cadeia de suprimentos – da originação no campo ao embarque nos portos.

Nos anos seguintes, a COFCO aumentou sua presença no Brasil, comprando silos, esmagadoras e terminais logísticos. Em 2017, investiu mais de R$700 milhões em um novo terminal portuário em Santos, disputando espaço diretamente com as tradings ocidentais. No mesmo ano, anunciou a construção de um terminal próprio no Arco Norte, criando um canal de escoamento via Miritituba e Barcarena, no Pará – um dos principais trunfos logísticos da Cargill.

Hoje, a COFCO já figura entre as cinco maiores exportadoras de grãos do Brasil, movimentando mais de 18 milhões de toneladas por ano. Seu avanço pressiona Bunge e Cargill em um mercado que antes pareciam dominar sem ameaças. Enquanto a holandesa e americana ainda controlam a maior parte da infraestrutura portuária e ferroviária, a COFCO aposta na força do capital chinês para continuar sua escalada.