O que está em jogo com o retorno da 99Food e a chegada da Meituan?

O Brasil sempre teve apetite por comida. Mas, nos últimos anos, passou a despertar também o apetite dos investidores de tecnologia, não pela comida em si, mas pela logística, pelos dados e pelo hábito de pedir tudo com um toque no celular.
Com 55 milhões de usuários ativos, 120 milhões de pedidos mensais e mais de 1,5 mil cidades atendidas, o mercado brasileiro de delivery se transformou em um dos maiores do mundo. Em valor, movimenta dezenas de bilhões por ano. Em dados, vale muito mais.
O iFood sempre reinou com folga, respondendo por cerca de 80% das entregas no país. Os concorrentes que tentaram disputar espaço, de startups locais a gigantes internacionais como Uber Eats, todas acabaram encolhendo, mudando de foco ou deixando o jogo. Mas, em 2025, o tabuleiro começou a mudar. E não por um movimento doméstico, mas por uma nova leva de capital chinês.
Esse é o pano de fundo da nova disputa que se arma no setor.
Duas frentes se abriram quase ao mesmo tempo. De um lado, o retorno da 99Food, controlada pela DiDi Chuxing, prometeu R$1 bilhão para retomar operações no país, agora com um plano mais robusto e agressivo. De outro, a entrada da chinesa Meituan maior plataforma de entregas da China, avaliada em mais de R$600 bilhões na bolsa de Hong Kong, estreia no Brasil com sua marca Keeta e uma promessa de R$ 5,6 bilhões para conquistar o mercado. Somados, os dois grupos anunciaram investimentos de R$ 6,6 bilhões no Brasil. É a maior ofensiva no setor desde que o iFood se consolidou como monopólio funcional.
Um mercado grande demais para ser ignorado
O tamanho do mercado explica o interesse renovado. Segundo a Abrasel, o Brasil tem hoje cerca de 1,2 milhão de estabelecimentos de alimentação — 71% deles operam com delivery. O iFood lidera com folga: 55 milhões de usuários ativos, 360 mil entregadores e mais de 120 milhões de pedidos por mês. A empresa se transformou numa infraestrutura crítica para bares, restaurantes, farmácias e mercados de bairro em mais de 1.500 cidades brasileiras.
É justamente esse grau de penetração que desperta atenção — e abre espaço para rupturas. Um sistema tão dominante tende a concentrar poder demais, gerar ineficiências e limitar opções de preço e negociação para os demais elos da cadeia. E foi nesse ponto que a nova leva de competidores encontrou sua narrativa de entrada.
O cenário até aqui
A lógica do mercado brasileiro de delivery vinha sendo simples: uma operação dominante (iFood), alguns players marginais (Rappi, aplicativos regionais), e uma base cada vez mais ampla de restaurantes e consumidores integrados à rotina de pedir refeições online.
O iFood conquistou o mercado com uma mistura de usabilidade, rede de entregadores e força de capilaridade comercial. Seu domínio chegou a 80% das entregas, segundo estimativas de mercado, e a empresa se consolidou como plataforma de referência, apoiada por uma estrutura robusta de marketing, crédito, logística e tecnologia.Em 2023, o iFood teve que abrir mão de sua principal barreira de proteção: os contratos de exclusividade com restaurantes. O Cade, pressionado por denúncias e um ambiente mais atento à concorrência digital, impôs restrições à prática. O iFood recuou — e, involuntariamente, deixou brecha para um novo jogo.
O retorno da 99Food
A 99Food, braço de delivery da plataforma 99, retorna ao setor após uma saída precoce em 2023. A empresa foi lançada originalmente como uma startup de mobilidade urbana no Brasil, em 2012. Em 2018, foi vendida à chinesa DiDi Chuxing por cerca de US$ 1 bilhão — tornando-se o primeiro unicórnio brasileiro. A operação de entrega de comida surgiu como extensão natural da plataforma, mas não resistiu ao domínio do iFood. Agora, volta com uma estratégia de mercado muito mais agressiva.
O plano prevê investimentos de R$ 1 bilhão ao longo de 2025. Entre os anúncios estão: isenção de taxas para restaurantes, garantia de R$ 250 por dia a entregadores (desde que cumpram metas mínimas de viagens), pagamento instantâneo via 99Pay e a criação de pontos físicos de apoio para os entregadores — com água, banheiro e áreas de descanso. A empresa também se comprometeu publicamente a buscar integração com a previdência e estabelecer um modelo de remuneração mínima, algo que ainda está em aberto no setor.
Mais do que entregar comida, a 99Food quer ser parte de um “superapp”: um ecossistema que integre transporte, entregas e serviços financeiros, todos amparados pela infraestrutura da DiDi. O discurso é claro: não é só sobre market share. É sobre controle de plataforma.
A reação do iFood
O iFood, por sua vez, já vinha se reposicionando — e agora acelera. Em maio, anunciou uma parceria com a Uber. Usuários do iFood poderão solicitar corridas sem sair do app. E, na plataforma da Uber, será possível acessar os serviços de entrega do iFood. É uma união simbólica e estratégica. Em 2022, o Uber Eats havia encerrado suas operações no Brasil, após não conseguir superar a liderança do rival. Agora, a volta da Uber ao jogo, ainda que como parceira, reforça a percepção de que o domínio do iFood será desafiado — mas não de forma solitária.
Além disso, o iFood vem ampliando seu escopo. Lançou a campanha “iFood é Tudo Pra Mim”, ampliando atuação para mercados, farmácias, bebidas e pet shops. Criou ferramentas como o iFood Pago, que oferece crédito para restaurantes parceiros. E, segundo a empresa, registrou um aumento de 37% na adesão de estabelecimentos nos últimos meses. O movimento é claro: transformar a plataforma em uma espécie de marketplace de conveniência, com mais serviços, mais recorrência e mais fidelidade.
A ofensiva da Meituan
Mas a maior incógnita não vem da 99 — vem da China.
A Meituan, controladora da Keeta, é a líder absoluta do setor de entregas na China e um dos maiores superapps do mundo. Em Hong Kong, sua atuação foi fulminante: entrou em 2023, conquistou 44% do mercado em menos de um ano e levou à saída da britânica Deliveroo. A estratégia foi baseada em três pilares: taxa zero para restaurantes, cupons agressivos para consumidores e bonificações acima da média para entregadores. Em três meses, as rivais começaram a perder entregadores. Em doze, perderam o mercado.
Agora, a Meituan promete investir R$ 5,6 bilhões no Brasil. A marca Keeta já começou a montar operação local e deve seguir um roteiro parecido ao de Hong Kong. A ofensiva gera entusiasmo entre bares e consumidores, mas também acende o alerta de especialistas.
Cade em campo
O mercado de delivery brasileiro já foi tema de debates concorrenciais no passado. Em 2023, o iFood assinou um acordo com o Cade se comprometendo a não estabelecer contratos de exclusividade com restaurantes — prática que vinha sendo usada para travar a entrada de novos players.
Agora, com o avanço da Meituan, o debate retorna. Ainda que a entrada da Keeta pareça promissora para consumidores e restaurantes, existe o risco de que a estratégia de preços artificialmente baixos e incentivos agressivos leve à eliminação dos concorrentes. É o chamado “dumping predatório”. Caso haja evidências de abuso de poder econômico, o Cade poderá intervir novamente, inclusive com medidas de desconcentração.
Especialistas apontam que o desafio será comprovar a intenção de domínio. Em teoria, práticas promocionais não são ilegais. Mas se vierem acompanhadas de exigências de exclusividade ou coerção de parceiros, podem ser enquadradas como infrações à ordem econômica.
Um futuro mais fragmentado — e mais volátil
No curto prazo, quem ganha é o consumidor. Mais competição tende a gerar mais cupons, mais promoções e, possivelmente, melhores condições para entregadores. Restaurantes também se beneficiam da redução (ou eliminação) das taxas cobradas pelas plataformas.
Mas o efeito de médio prazo é mais difícil de prever. O setor de delivery já opera com margens apertadas e alto nível de informalidade. A guerra de preços pode favorecer a concentração — e, paradoxalmente, gerar uma nova hegemonia, só que com sotaque estrangeiro.
Além disso, o modelo de “superapp” da Meituan e da 99Food impõe desafios adicionais ao ecossistema: aumenta a dependência tecnológica, altera as relações trabalhistas e muda a lógica de fidelização de clientes. O iFood, por sua vez, tenta deixar de ser apenas um app — quer se transformar em infraestrutura. Algo como o “sistema operacional” da alimentação e do consumo cotidiano.
O mercado de delivery, que parecia já resolvido, voltou a ser um campo de disputa estratégica. Não se trata mais de quem entrega mais rápido ou quem cobra menos taxa. Trata-se de quem terá o controle da jornada digital dos brasileiros — do transporte ao pagamento, da refeição ao crédito. E, neste novo capítulo, o jogo está só começando.
Quem ganha a última milha?
A batalha final será na entrega. O app que conseguir ter mais entregadores disponíveis, mais rápidos e melhor remunerados tende a ganhar o consumidor na hora da fome.
A 99Food sai com um trunfo: 1,5 milhão de motoristas e entregadores cadastrados na base da 99. Pode cruzar oferta de transporte e delivery com inteligência logística e gerar ganhos de escala. A Meituan domina esse jogo na China. E o iFood ainda lidera no Brasil com estrutura própria, sistema de roteirização e entrega integrada em 1.500 cidades.Mas os entregadores também têm memória. Eles sabem quem paga rápido, quem trata como parceiro e quem entrega mais corridas por hora. O risco para o iFood não é só perder restaurantes ou consumidores. É perder quem faz a entrega acontecer.