Os bastidores da disputa entre a Globo, Bradesco e Carlos Slim pela maior operadora de TV a cabo do Brasil

A disputa pelo controle da Net, nos anos 2000, parecia discreta. Mas carregava todos os elementos de uma boa história empresarial: um ativo de valor, um impasse societário, os bastidores de Brasília e, no centro, dois pesos-pesados do capitalismo latino-americano — o Grupo Globo, então maior conglomerado de mídia do país, e o mexicano Carlos Slim, o homem mais rico da região.
A Net, criada nos anos 1990 como braço de distribuição da Globo para viabilizar a TV paga, foi o projeto mais ambicioso da emissora fora da produção de conteúdo. Com redes próprias, aquisição de operadoras regionais e dívidas, a empresa se expandiu rápido nos principais centros urbanos do país, amparada por uma estrutura societária que permitia à Globo exercer o controle com participação minoritária, em aliança com Bradesco e fundos de pensão.
Mas esse modelo começou a ruir a partir de 2003, quando a Embratel, recém-comprada por Slim por US$400 milhões, iniciou sua aproximação financeira da Net. Em uma série de movimentos que durariam quase uma década, a Globo seria gradualmente diluída e perderia, definitivamente, o controle da empresa que havia criado.

A Criação da Net

A história da Net começa em 1991, com a formação de uma joint venture entre a Globo e o Bradesco para reunir operadoras regionais de TV a cabo sob um único guarda-chuva nacional. À época, a ideia era simples: aproveitar a abertura regulatória promovida pelo governo Collor para construir uma rede nacional de distribuição de conteúdo — com a TV Globo como principal âncora.
A estrutura foi montada a partir da Globo Cabo, empresa que controlava operações em São Paulo, Rio de Janeiro e outras grandes cidades. Em 1998, com a incorporação da Multicanal e de outras redes regionais, a companhia passou a se chamar Net Serviços. A Globo detinha 49% do capital votante e liderava a gestão, enquanto o Bradesco, com cerca de 27%, atuava como sócio financeiro e avalista dos principais financiamentos. Em 1999 a Microsoft investiu cerca de US$126 milhões na Net, ficando com aproximadamente 11% das ações

Em poucos anos, a Net tornou-se a principal operadora de TV por assinatura do país, com mais de 1,3 milhão de assinantes em 2001 — quase metade do mercado nacional. O plano da Globo era verticalizar: produzir conteúdo, controlar a distribuição e dominar a relação com o consumidor final. Mas, para isso, era necessário investir pesadamente em infraestrutura, tecnologia e aquisição de concorrentes.
Dívida Alta, Crescimento Lento

No início dos anos 2000, o crescimento acelerado da NET começou a perder fôlego. A base de assinantes, que havia crescido de forma contínua na década anterior, passou a estagnar. A concorrência com a TVA (do Grupo Abril) e com operadoras de MMDS impunha limites nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, os altos investimentos exigidos pela digitalização da rede e pela expansão da banda larga consumiam capital com rapidez.
A empresa estava atolada em dívidas. Em 2003, sua dívida líquida ultrapassava R$2 bilhões e o prejuízo acumulado dos últimos cinco anos já passava de R$1 bilhão. A situação era reflexo direto das escolhas da holding controladora, a Globopar, que havia investido mais de US$1,7 bilhão em infraestrutura para a NET e para a Sky Brasil. Boa parte desses investimentos foi financiada com empréstimos em dólar e emissão de bonds internacionais.
Enquanto a operação tentava ganhar escala com novas tecnologias e aquisições regionais, o endividamento sufocava a companhia. O Bradesco começou a pressionar por mudanças estruturais. O banco defendia a entrada de um novo sócio, com capacidade de capitalizar a operação e modernizar a rede. A Globo resistia, para os Marinho, abrir mão do controle da NET significava abrir mão do canal direto com os assinantes.
Mas a situação ficou insustentável. Entre 2001 e 2003, a Globopar entrou em colapso financeiro. O grupo foi afetado pela disparada do dólar, que saltou de R$1,85 para mais de R$3,80, para piorar, durante o período o Brasil viveu sua pior crise hídrica da história, o que gerou racionamento de energia, queda na atividade econômica e consequentemente uma retração publicitária, além de sucessivos rebaixamentos de rating, o que diminuía sua capacidade de acessar crédito.
Em 2002, a holding deixou de pagar US$28 milhões a credores e entrou formalmente em default. Precisou renegociar cerca de US$1 bilhão em dívidas externas e começou um processo de desmobilização: ativos foram vendidos, estruturas enxugadas e a prioridade passou a ser preservar o controle da TV Globo.
A NET também continuava sofrendo. Desde o IPO, em 1996, quando suas ações foram precificadas acima de R$20, o valor de mercado desabou. Em 2004, os papéis da operadora valiam menos de R$2. A companhia precisava urgentemente de capital fresco para continuar operando e os sócios fundadores já não tinham fôlego para sustentá-la.
A Jogada de Slim
Carlos Slim havia acabado de chegar ao Brasil em 2003, ao comprar a Embratel por US$400 milhões. A operadora de longa distância havia sido privatizada em 1998, mas estava fragilizada após a quebra da MCI/Worldcom, seu antigo controlador. Slim assumiu a empresa por meio da Telmex, que já operava em mais de 10 países da América Latina, e passou a mirar o consumidor final — o chamado “last mile”.
A Net era o alvo óbvio. Com rede em fibra e coaxial em dezenas de cidades, base de assinantes relevante e sinergia operacional com a Embratel, a companhia era ideal para o plano de expansão de Slim no Brasil. Mas tomar o controle diretamente exigiria vencer obstáculos regulatórios e societários — a começar pelo poder de veto da Globo.
A saída encontrada foi gradual, a partir de 2004, a Embratel passou a injetar capital na Net por meio de debêntures conversíveis em ações, aportes diretos e compras de ações preferenciais. Só naquele ano, os aportes chegaram a R$850 milhões. Com a Globo sem fôlego para acompanhar os aumentos de capital, Slim passou a ganhar espaço, primeiro como credor e depois como investidor relevante.
A cada rodada, a participação acionária da Globo se diluía. Em menos de dois anos, o grupo mexicano passou a deter 37% das ações ordinárias — abaixo dos 49% da Globo — mas com uma vantagem crucial: direito de indicar a maioria dos membros do conselho. Isso foi possível graças à combinação de pactos societários, preferência nos votos e alinhamento com minoritários estratégicos.
Na prática, Slim assumiu o controle da Net sem jamais precisar comprar a maioria das ações. Foi uma tomada de poder silenciosa, amparada pela necessidade de capital da empresa e pela ausência de reação da Globo, que, endividada e sem liquidez, não conseguiu acompanhar os aumentos de capital.
A Venda Formal
Em 2005, a Globo decidiu formalizar sua saída. A venda foi anunciada em abril daquele ano, por R$ 570 milhões, incluindo ações ordinárias e preferenciais. Com isso, a Embratel passou a deter mais de 51% das ações com direito a voto e consolidou de vez o controle.
A operação foi feita por meio da empresa RST (Rio de Janeiro Teleholding), criada pela Embratel como veículo para integrar seus ativos de cabo e telefonia. A nova estrutura permitia à Telmex unificar a gestão das operações de banda larga e TV, além de abrir caminho para ofertas triple play — com internet, TV e telefone no mesmo pacote.
A marca Net foi mantida, mas sua natureza mudou, a empresa, antes focada em distribuição de conteúdo da Globo, passou a se comportar como uma operadora de telecomunicações tradicional. Em 2006, lançou planos de internet com velocidades inéditas para o Brasil, incorporou novos canais ao portfólio e expandiu sua presença para mais de 100 municípios.
Para a Globo, a saída foi estratégica e forçada. A emissora precisava reduzir sua exposição a dívidas, reestruturar sua operação de mídia e preparar-se para o avanço do digital. A venda da Net, apesar de dolorosa, ofereceu alívio de caixa e permitiu ao grupo concentrar-se na produção de conteúdo e na distribuição via satélite e plataformas digitais.
A Consolidação: Net + Claro = Domínio

Em 2011, a América Móvil, holding criada por Slim para consolidar seus ativos, integrou a Net, a Claro e a Embratel sob uma única estrutura. Nascia ali o maior conglomerado de telecomunicações do Brasil, com mais de 60 milhões de clientes em TV, telefonia e internet.
A Net passou a operar com a marca Claro Net, e seu poder de mercado cresceu rapidamente. Em 2015, já detinha 52% da TV por assinatura no Brasil e mais de 30% do mercado de banda larga fixa. A estrutura verticalizada permitia oferecer combos agressivos, dominar o atendimento ao cliente e impor barreiras à entrada de novos concorrentes.
Slim, que havia entrado discretamente no Brasil pelas beiradas da Embratel, consolidou sua posição com paciência e capital. A aposta na infraestrutura — ao contrário do conteúdo — provou-se vencedora. E a antiga operadora da Globo tornou-se peça-chave de um império latino-americano de telecom.
A Globo Pós-Net

Sem a Net, a Globo reestruturou sua atuação, a partir de 2006, reforçou sua presença na Globosat, ampliou a oferta de canais como Multishow, GNT, SporTV e Viva, e passou a negociar diretamente com operadoras. Mais tarde, em 2018, unificou todas as áreas de conteúdo sob a marca “Globo”, preparando o terreno para o Globoplay.
A relação com a Net (agora Claro) passou de parceria para negociação contratual. A Globo perdeu o canal direto com o assinante, mas ganhou agilidade para focar em tecnologia, produção e licenciamento global.
Hoje, o grupo aposta no modelo “direct-to-consumer”, com foco no digital e no relacionamento direto com o espectador. A lição da Net foi clara: infraestrutura exige capital intensivo, governança empresarial e paciência de décadas. Características que, fora do conteúdo, não combinavam mais com a Globo.
O Fim da Net
A marca Net sobreviveu por mais alguns anos, mas já sob o guarda-chuva da Claro — controlada pela América Móvil, o conglomerado de Carlos Slim. Em 2019, a operadora anunciou oficialmente o fim da marca “Net” e a unificação de todos os serviços sob a identidade Claro. Era o capítulo final de uma transição iniciada mais de 15 anos antes.
Em termos operacionais, a Net desapareceu. Mas sua base de clientes e infraestrutura se tornaram a espinha dorsal da Claro nos serviços de TV por assinatura e banda larga fixa. A antiga estrutura de fibra e coaxial da Net — construída a duras penas pela Globo nos anos 1990 — é hoje um dos ativos mais relevantes do portfólio brasileiro da Claro.
Slim começou como parceiro financeiro em uma empresa endividada, terminou como dono de uma operação reestruturada, com milhões de clientes, presença nacional e posição dominante em vários segmentos.
A Globo, por sua vez, saiu da infraestrutura e concentrou-se em conteúdo, publicidade e distribuição digital. Sua última participação residual na Claro foi vendida discretamente em 2020. Hoje, não tem mais nenhuma presença relevante no setor de telecomunicações.